Pai, se queres, passa de mim este cálice.
Os Instrutores Espirituais asseguram que a personalidade de Jesus ainda é
inabordável ao entendimento humano.
Não temos capacidade, nem de cultura, nem de sentimento, para
compreender o Mestre.
Não lhe podemos conhecer os divinos pensamentos.
Não lhe podemos analisar as atitudes.
Falecem-nos recursos para interpretar-Lhe, de maneira integral, todas as
palavras e ensinamentos.
Por isso — asseveram —, é o Cristo ainda inabordável à compreensão do
homem.
O Cristo não é conteúdo para a taça da compreensão humana.
Efetivamente, é muito difícil entender certas atitudes do Senhor, qual ocorre
com a que teve por cenário o Getsemani -
Essa dificuldade de compreensão dos sentimentos de Nosso Senhor; de
aprofundar-Se-lhe a Alma sensível, a individualidade universal, acentua-se,
principalmente, quando se Lhe pretende examinar as palavras proferidas no
Horto, em horas que precederam o Calvário:
— “Pai, se queres, passa de mim
este cálice.”
Há quem interprete a atitude do Senhor como de receio ante o martírio que
se avizinhava.
E os que assim pensam, dizem: “Houve um eclipse na Grande Alma do
Cristo, eclipse que logo se dissipou. Foi uma nuvem rápida que ocultou, por
instantes, o refulgente Sol, O Cristo Eterno reagiu, prontamente, contra o gesto
humano do Filho de Maria.”
Nosso pensamento, a respeito do comovente e sublime episódio, é um
tanto diverso.
A nosso ver — e tendo o cuidado de realçar a inabordabilidade do Cristo —
o cálice que o Mestre preferia não sorver não era o do madeiro.
Nem o da coroa de espinhos.
Nem dos cravos, nem da lança que lhe fizeram jorrar o sangue generoso.
Nem o da morte entre dois ladrões comuns.
O cálice que o Cristo preferia não lhe fosse dado a beber, foi o da
compaixão.
Condoera-se Jesus, por antecipação, antevendo o esfacelamento de toda
uma semeadura de espiritualidade e redenção em favor dos homens.
Era todo um apostolado de luz e esclarecimento que se diluía sob o
apaixonado impulso da Humanidade — cuja salvação fora o objetivo
fundamental de Sua vinda ao mundo. A Humanidade caminhava na direção do abismo —e o Cristo o pressentia
e lastimava, preferindo não acontecesse.
“Pai, se queres, passa de mim este cálice.”
Falou o Mestre como falaria um coração maternal que observa, no rumo do
precipício, os passos do filho extremecido. Coração exuberante de amor, transbordante de ternura, ébrio de carinho.
A Humanidade era bem o filho negligente, teimoso, que ouvira as lições, mas não lhes assimilara o conteúdo.
Eclipse do Mestre — nunca.
O Cristo foi, é e continuará sendo um sol sem eclipses.
Um astro que ilumina eternamente, sem alternativas, nem oscilações.
Uma estrela de primeira grandeza, cujos reflexos atravessam todos os
corpos, por mais gigantescos e sólidos.
Um Sol que transpõe e vence infinitas distâncias.
Assim pensando e sentindo, afirmamos: Eclipse, não...
Jesus pressentira que os homens arquitetavam, no silêncio, o crime
inominável, pelo qual haveriam de responder, inelutavelmente, por séculos e
milênios.
“A cada um será dado segundo as suas obras” consecutivas vezes
ensinara.
Percebia, em Sua divina intuição, que os filhos de Sua Alma — Alma
Maternal — engendravam o mais hediondo assassínio de toda a História
universal, através de sua imolação — dEle que tinha vindo ao mundo justamente
para redimi-los, para salvá-los.
“Pai, se queres, passa de mim este cálice.”
Os cegos e os mudos, os paralíticos e os surdos, os leprosos e os infelizes
haviam recebido do seu coração inesgotáveis benefícios.
Na alma de todos — pobres e ricos, grandes e pequenos — plantara as
sementes da fraternidade e do perdão. E ansiava por que elas germinassem.
Viera ao mundo — dizia — para lançar fogo sobre a Terra. “E bem quisera que já estivesse a arder.”
Não exigia o Mestre o reconhecimento, a gratidão dos homens; contudo,
esperava que os seus corações guardassem, retivessem o perfume da
renovação, a essência do Amor que lhes trouxera dos santuários espirituais.
E os homens, filhos de Sua Alma, maquinavam, no silêncio, a sua morte...
Em alguma parte forjavam, na sombra, a própria condenação.
Auto-sentenciavam-se.
Jesus, num átimo, no Getsemani. olhou o futuro da Humanidade.
Devassou-lhe os milênios de provação e resgate, e condoeu-se dos
homens.
Sua Alma encheu-se de compaixão.
Piedade pelos homens, que voltariam, em novos corpos, várias vezes, para
o resgate inevitável.
Não por Seu corpo, nem por Seu Espírito, indestrutível, eterno: pela alma
coletiva da Humanidade, que, naquele instante, se preparava para consumar,
com o Sangue do Justo, o seu grande, histórico pecado: o extermínio do
Cordeiro de Deus!
O cálice do Cristo não foi o do temor — foi o da compaixão.
O cálice do Cristo não foi o do medo — foi o da piedade.
O cálice do Cristo não foi o do receio ante a cruz de madeira — foi o da
Tristeza ante a Cruz de sofrimento que os homens poriam nos ombros, horas
depois, carregando-a, daí por diante, por muitos séculos e milênios.
Eclipse — nunca.
Cristo é um Sol inofuscável, que transcende quaisquer sombras, que não
conhece eclipses...
O Seu coração, compassivo e misericordioso, que ama, sofre e chora o
Filho Pródigo, inundar-se-ia, sem dúvida, de felicidade, transbordaria de júbilo,
se aquele assassínio não se consumasse.
“Pai, se queres, passa de mim este cálice.”
Mas, ante a pertinácia dos algozes, respeitando-lhes o livre arbítrio, volta-se
para Deus, sereno e majestoso: “Pai, se não é possível, faça-se a tua
vontade.”
O Pai quisera, mesmo, que o Suave Embaixador bebesse, até à última
gota, na taça da incompreensão humana, o licor da piedade e do amor.
Da misericórdia e da compaixão.
Nunca, o cálice do temor, que seria um eclipse nublando um Sol radioso,
eterno, inublável.
Eclipse — não...
Martins Peralva Estudando o Evangelho
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