Olá,
Disse alguém que a permanência na Terra é semelhante a um baile de máscaras, em que
alguns entram, enquanto outros saem.
Para mim, no entanto, que me consagrei ao teatro na última romagem por aí, suponho
mais razoável a comparação do mundo a velho e sempre novo cenário, onde
representamos nossos papéis, ensaiando para exercer funções gloriosas de almas
conscientes na eternidade.
Cada existência é uma parte no drama evolutivo.
Cada corpo é um traje provisório, e cada
profissão uma experiência rápida.
A vida é a peça importante.
O período de tempo, que medeia entre uma entrada pelo berço e uma saída pelo túmulo,
é precisamente um ato para cada um de nós no conjunto.
Muito importante é a arte de viver cada qual o seu próprio papel.
Há lamentáveis distúrbios, no elenco e na platéia, sempre que um dos artistas invada as
atribuições do colega no argumento a ser vivido no palco, sobrevindo verdadeiras
calamidades, com desagradável perda de tempo, em todas as ocasiões em que se
despreze aquela norma.
A representação reclama inteligência, fidelidade, firmeza, emoção e eficiência, com
aproveitamento integral dos lances psicológicos, e alta capacidade de autocrítica.
Nunca chorar no instante de rir e jamais sorrir no momento da lágrimas.
Providenciar tudo a tempo.
Tonalizar a voz e medir os gestos, para não converter a tragédia em truanice; respeitar as
convenções estabelecidas, a fim de que o artista não desça da galeria do astro ao terreiro
do bufão.
Segundo o parecer dos sensatos homens da antiguidade, o sapateiro não se deve
exceder no salão do pintor, e o pintor, a seu turno, precisa comedir-se na tenda do
sapateiro.
Encarnando um juiz, um político, um sacerdote, um beletrista, um negociante ou um
operário, não será aconselhável apresentarmos obra muito diferente do trabalho daqueles
que nos precederam, investidos em obrigações idênticas: correríamos o risco da
excentricidade e do apedrejamento.
Compete ao nosso bom senso talhar o figurino, tendendo para o melhor, sem
escandalizar, contudo, os moldes anteriores.
O comerciante não deve absorver o papel do filósofo, embora o admite e lhe siga as
regras.
O homem de idéias, por sua vez, não deve furtar o papel do mercador, apesar de
convidá-lo à meditação.
Atulhando o edifício em que funciona o teatro, há sempre grande massa de bonecos, no
almoxarifado da instituição. É a turba compacta de pessoas que nada fazem pela própria
cabeça, constituída por ociosos de todos os feitios, a formarem o “grand-guignol” da vida
comum, habitualmente manejados por hábeis ventríloquos da inteligência.
E, enchendo o subterrâneo ou cercando as gambiarras e os tangões, temos o exército
dos que arrastam escadas e pedras, móveis e cortinas, na qualidade de tecelões do
verdadeiro urdimento para as mutações necessárias.
São eles os espíritos acovardados
ou preguiçosos, que renunciam ao ato de escolher o próprio caminho e que abominam o
conhecimento, a elevação e a aventura, entronizando o comodismo em ídolo de suas
paixões enfermiças.
Demoram-se longo tempo na imbecilidade e na teimosia, suportando
pesos atrozes pela compreensão deficiente.
No proscênio, focalizados por luzes de grande efeito, movimentam-se os atores e as
atrizes da ação principal. São pessoas que se impõem no palco vivo.
Discutem.
Apaixonam-se.
Gritam.
Criam emoções para os outros e para si mesmos.
Agitam-se,
imponentes, na grandeza ou na miséria, na glória ou na decadência.
Respiram,
conscientes da missão que lhes cabe.
São geralmente calmos na direção e persistentes na ação. Transitam, através dos
bastidores, obstinados e serenos, com segurança matemática. Pronunciam frases bem
meditadas, usam guarda-roupa adequado e não traem a mímica que lhes compete.
Homens e mulheres, acordados para a vida e para o mundo, caminham para os objetivos
que traçaram a si mesmos. Entre eles vemos príncipes e sábios, rainhas e fadas, ricaços
e pobretões, poetas e músicos, comendadores e caravaneiros, noivas e bruxas, artífices e
palhaços. Com diferenças na máscara e no coração, cada um deles funciona dentro da
posição que a peça lhes designa.
Cada qual responde pela tarefa que lhe é peculiar.
O espírito, que, durante alguns dias, desempenhou com maldade e aspereza a função da
governança, volta à mesma paisagem na situação do dirigido.
O juiz que interferiu,
indebitamente, no destino de muitas pessoas, regressa ao palco nalgum caso complicado,
para conhecer, com mais precisão, o tribunal onde colaborou vestindo a toga, depressa
restituída a outros julgadores.
O operário inconformado, que se entrega à indisciplina e à
rebelião, volta, às vezes, ao grande teatro da vida, exibindo o título de administrador, a fim
de conhecer quantas aflições custa o ato de responsabilizar-se e dirigir.
O médico
distraído na ambição do lucro efêmero volve em algum catre de paralítico, de modo a
refletir na importância da Medicina. Sacerdotes indiferentes ao progresso das almas
retornam curtindo a desventura dos órfãos da fé.
Homens endemoninhados, que
atravessam a cena quais faunos bulhentos, perturbando as ninfas da virtude e
impossibilitando-lhes o ministério maternal, não raro se vestem com trajes femininos e
comparecem, de novo, ao palco, sabendo, agora, quanto doem na mulher o abandono e o
menosprezo, a ironia e a humilhação.
O papel mais pesado é sempre aquele que se reserva aos heróis e aos santos, porque
esses atores infelizes vivem cercados pelas exigências do teatro inteiro, embora, no
fundo, sejam também personalidades frágeis e humanas.
O que conforta de maneira invariável é que há lugar e missão para todos.
Cada criatura
dá espetáculo para as demais. Entretanto, para a tranquilidade de todos, ninguém se
lembra disso. E a peça vai sendo admiravelmente representada, sob recursos de
supervisão que estamos muito longe de aprender.
Eis-me, pois, amigo, nestas páginas, que estimularão entre as pessoas sensatas a
certeza da sobrevivência da alma.
Não tenho qualquer mensagem valiosa a enviar-lhe. Digo-lhe apenas, usando a
experiência pessoal que o tempo hoje me confere, que esse mundo é, realmente, um
grande teatro. Represente o seu papel com serenidade e firmeza e, decerto, você
receberá tarefa mais importante no ato seguinte.
Leopoldo Fróis/Francisco C. Xavier " Falando à Terra "
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