sábado, 14 de março de 2020

Cotidiano - A suprema conquista

Olá,

 O homem que rasga as entranhas da terra em busca do minério oculto em seu seio; que desce às profundezas oceânicas explorando seus pélagos e abismos mais recônditos; que sulca os ares, elevando-se às alturas em vôos mais ousados e destemidos que os do condor e da águia; que penetra o mundo do infinitamente pequeno e do infinitamente grande — o microcosmo e o macrocosmo — devassando suas íntimas e secretas maravilhas; que doma e submete as feras, desbravando sertões e selvas densas; que afronta os elementos em fúria, lutando com os temporais, com os terremotos, com as lavas incandescentes que as crateras vulcânicas
vomitam aos borbotões; que porfia com a peste, que vence as endemias mais radicadas saneando regiões onde elas reinavam infrenes; que se utiliza, em suas cidades e em seus lares, da eletricidade, esse fluido imponderável, incoercível, desconhecido e misterioso capaz de fulminar num dado instante aqueles que atinge; que apanha o raio no ar e o conduz por um fio, neutralizando seu poder de destruição; que apagou as distâncias, unindo os continentes através dos mares e do espaço, pondo em contacto cotidiano raças, nações e povos do Norte e do Sul, do Oriente e do Ocidente, do Velho e do Novo Mundo; que pisou as inóspitas regiões polares onde nenhum sinal de vida se encontra; que realizou praticamente quase todas as fantasias e sonhos de Júlio Verne; que já ergueu a ponta do véu que separa os dois planos — da matéria e do Espírito — perscrutando os arcanos celeste»; o homem que de todas essas façanhas se vangloria, que de todas essas proezas e feitos se desvanece e se orgulha, ignora ainda os segredos de sua mente e os mistérios de seu coração!
O homem que enfrenta o inimigo em campo raso, a peito descoberto, no meio de fuzilaria cerrada; que não recua diante das metralhadoras, dos canhões e dos petardos, não é capaz de suportar uma pequena ofensa, de ânimo sereno e coração tranuilo!
Não é capaz de desarmar o agressor, transformando as agressividades em carícias!
O homem que é capaz de destruir cidades seculares em algumas horas; que é capaz de talar campos e searas em poucos momentos; que é capaz de dizimar multidões, estendendo o negro véu da orfandade sobre milhares de crianças, é incapaz de vencer vícios vulgares e rasteiros como os do jogo, do álcool, dos entorpecentes, do tabaco, etc.!
O homem que sabe línguas, ciências, filosofias, política e artes várias, não sabe ser bom e justo, tolerante e fraterno; não sabe, tão pouco, resolver os problemas da pobreza, da enfermidade e da dor! Finalmente, o homem que tanto tem conquistado e tanto tem conseguido, ainda não se conquistou a si mesmo, ainda não conseguiu domar e vencer suas próprias paixões!

Vinícius        " Em torno do Mestre"

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