segunda-feira, 23 de junho de 2014

Viagem Espírita 1862 II

Olá,

Pudemos constatar a marcha progressiva de ensino pela natureza das comunicações obtidas nos diferentes grupos que visitamos e que comparamos com outras anteriormente recebidas. Elas não se distinguem apenas por sua extensão, sua amplitude de vistas, facilidade de obtenção e alta moralidade, mas, acima de tudo, pela natureza das idéias discutidas e, frequentemente, de forma magistral. Isso, sem dúvida, depende muito do médium, porém não exclusivamente. Não basta ter um bom instrumento, é necessário dispor de um bom músico para dele tirar bons sons e, ainda mais, é preciso que o executante disponha de uma audiência capaz de compreendê-lo e de apreciá-lo.
Quem se daria ao trabalho de executar diante de surdos?
Esse progresso, convenhamos, não é geral. Abstração feita dos médiuns, nós o constatamos em relação ao caráter dos grupos. Atinge seu mais amplo desenvolvimento naqueles onde reina, juntamente com a fé mais ativa, os sentimentos puros, o desinteresse moral mais intenso.
Os espíritos sabem muito bem em quem depositar sua confiança, relativamente a problemas que não podem ser compreendidos por toda a gente. Naqueles em que esbarram com condições menos elevadas, o ensino é bom, sempre moral, porém se restringe, mais geralmente, a banalidades.
Por desinteresse moral entendemos a abnegação, a humildade, a ausência de toda a pretensão orgulhosa e de todo o pensamento personalista postos a serviço do Espiritismo.
Seria supérfluo falar do desinteresse material, pois que esta é uma questão de princípio e, por outro lado, porque vimos, por onde quer que andamos, uma repulsa instintiva contra toda idéia de especulação, vista quase como um sacrilégio.
Os médiuns interesseiros e profissionais são desconhecidos nas localidades onde estivemos, com exceção de uma, onde se encontram alguns. Entretanto quem, por exemplo, em Bordeaux ou seus arredores, fizesse profissão de suas faculdades, não inspiraria nenhuma confiança; pelo contrário, seria repelido por todos os grupos. Essa atitude foi por nós constatada e registrada pessoalmente.
Um outro traço característico à época é o número incalculável e em constante crescimento de adeptos que nada viram e que, nem por isso, são menos entusiastas, pois que leram e compreenderam.
Em Cette, por exemplo, não se conhecem médiuns senão por se ouvir falar e pelas descrições dos livros. Não obstante é difícil encontrar-se mais fervor e dedicação à causa espírita do que ali. Um dos habitantes da cidade perguntou-me se essa facilidade em aceitar a doutrina pela simples teoria era um bem ou um mal, se era atitude condizente com um espírito reflexivo ou superficial.
Respondemos-lhe que a facilidade em aceitar a idéia espírita indica facilidade de compreender; que esta, como outra qualquer idéia, pode ser inata e que basta uma simples fagulha para fazê-la saltar de seu estado latente. Essa facilidade em compreender denota uma evolução anterior nesse sentido: seria leviandade aceitá-la sob palavra e cegamente.
Este, entretanto, não é o caso daqueles que só a adotam após haver estudado e compreendido. Eles vêem através dos olhos da inteligência o que os outros vêem simplesmente pelos olhos do corpo.
Isso prova que emprestam maior atenção ao fundo do que à forma. Para eles a filosofia é o principal; as manifestações constituem um mero acessório. A filosofia espírita explica-lhes o que nenhuma outra lhes pode explicar. Ela satisfaz-lhes à razão por sua lógica, preenche neles o vazio da dúvida e isto lhes basta. Eis porque preferem-na a qualquer outra. É raro que tais pessoas, compreendidas nesta categoria, não sejam bons e verdadeiros espíritas, pois que nelas existe o germe da fé, abafado momentaneamente pelos prejuízos terrestres.
De resto, os motivos de convicção variam conforme os indivíduos. Para alguns são necessárias provas materiais; para outros as provas morais são suficientes. Ora, indivíduos há que não são convencidos nem por umas nem por outras. Esses matizes possibilitam um diagnóstico de seu espírito. Em todo o caso pouco se pode esperar daqueles que dizem: "Só acreditarei se me fizerem assistir a tal ou tal coisa", e nada dos que julgam indigno de si mesmos estudar e observar.
 Quanto aos que afirmam: "Ainda que eu veja não acreditarei, pois sei que é impossível", é de todo inútil mencioná-los e mais inútil ainda perder, com eles, o nosso tempo. Já é muito, sem dúvida, crer, mas a crença apenas não é suficiente, se ela não oferece resultados e isso, infelizmente, tem ocorrido em muitos casos. Faço referência àqueles para os quais o Espiritismo não passa de um fato, de uma bela teoria, uma letra morta que não produz, na estrutura íntima dessas pessoas, nenhuma transformação, nem em seu caráter, nem em seus hábitos.
 Mas ao lado dos espíritas simplesmente crentes ou simpáticos à idéia, há os espíritas de coração, e nos confessamos felizes por havermos deparado com eles em grande número. Vimos transformações que poderiam ser rotuladas de miraculosas, recolhemos admiráveis exemplos de zelo, de abnegação e de devotamento, numerosos casos de caridade verdadeiramente evangélica que poderíamos, com justiça, denominar: Os belos traços do Espiritismo.
Vale aqui lembrar que as reuniões exclusivamente compostas de verdadeiros e sinceros espíritas, daqueles nos quais fala o coração, apresentam um aspecto muito especial: todas as fisionomias refletem a franqueza e a cordialidade. Nós nos encontramos à vontade nesses ambientes simpáticos, verdadeiros templos onde reina a fraternidade. Tanto quanto os homens, os espíritos aí se comprazem e é então que se revelam mais expansivos, que oferecem as orientações de caráter mais íntimo.
Pelo contrário, nos ambientes onde se registram divergências de sentimentos, onde as intenções não são puras ou onde se observa o sorriso sardônico e desdenhoso em certos lábios, onde se sente o sopro da malquerença e do orgulho, onde se teme a cada instante pisar o pé da vaidade ferida, há sempre constrangimento, embaraço e desconfiança. Em tais locais os próprios espíritos são mais reservados e os médiuns muitas vezes vêem-se paralisados pela influência dos maus fluidos que sobre eles pesam como um manto de gelo.
 Tivemos a ventura de assistir a numerosas reuniões que se enquadram na primeira categoria e registramo-las com grande alegria em nossos apontamentos, como as mais agradáveis lembranças que guardamos de nossa viagem. Reuniões dessa natureza se multiplicarão, sem dúvida, à medida que a verdadeira finalidade do Espiritismo for mais bem compreendida. Essas são, igualmente, as que fazem a mais frutuosa e mais sólida propaganda, pois que reúnem pessoas bem intencionadas e preparam a reforma moral da humanidade pregando pelo exemplo.

Allan Kardec

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